07/09/2017

O diabo de vestes azuis

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Conto feito em ??/04/2017
Por Bhrendha

Todos os dias, repetitivamente, era patético... Uma rotina imutável. Ele vive para esse trabalho mórbido.
Eles chegam, sempre estão dormindo, mas nem sempre tranquilos... Seus rostos pálidos o observavam durante o procedimento. Abria, examinava, limpava e, ainda, por vezes e um cachê pomposo, aformoseava seus restos embebidos de formol. Dava-lhes vestimentas, dignidade àqueles virtuosos que ainda podiam manter-se humanos, ao invés de corpos azuis, com veias desnutridas que se destacavam, indicando que ao menos alguma coisa ainda ali havia.
O velório não lhe era estranho. Convites lhe eram feitos, talvez pela sua expressão patética que refletia o único vinculo que ele já tivera, com os mortos.
O cansaço tomava-lhe a mente e transparecia em suas olheiras. Seu andar arrastado, seu movimento lento, seus olhos sem brilho algum, eram sintomas de uma alma sem cor e vida. Ele precisava do que chamavam de felicidade, líquida e estrangeira. 
Bebeu. Bebeu até que a rua se tornasse ondulada. Mal lamentava a própria infelicidade. Estava anestesiado, com os olhos inexpressivos, gélidos, fixados em um ponto qualquer por entre as árvores daquele bosque. Podia ver tudo, mas não entendia nada. Não reconhecia nada, nem mesmo onde estava... Até ver. Viu um vestido azul que tinha como dona uma moça morena e de cabelos curtos e avermelhados. Ela não tinha nada que lhe fosse chamativo, exceto seu vestido que se transformava em uma lamparina ambulante, que ao invés de atrair insetos, atraiu aquele bêbado desnorteado. A despreocupação lhe tomava os lábios em formato de um sorriso, enquanto carregava sacolas de uma pequena lojinha no fim da esquina. Ele estava apaziguado, estava espantado e admirado. Queria poder ajudá-la, queria acompanhá-la, queria se aproximar... Ele não soube como reagir, mas quando viu a moça se distanciando tomou coragem e resolveu segui-la. Ele iria oferecer sua ajuda, ele iria perguntar o nome dela. Seus passos eram descompassados e atrapalhados, faziam barulho, estes que assustaram a moça, que certamente ao perceber um estranho e bêbado atrás dela, aumentou o ritmo de sua caminhada noturna. Mil coisas passavam diante de sua cabeça, mas a pior delas era os vários motivos daquele homem ter virado a mesma esquina que ela, ter entrado no mesmo beco que ela, ter seguido ela até mesmo aquela avenida. Ela fugia, mas mal notava o quão longe estava de seu prédio. O medo tomou-lhe as veias, soltou as sacolas e passou a correr. Sua respiração pesava, seu arfar se misturava com grunhidos, ela não parecia ser muito atlética.  Um grito masculino foi ouvido por detrás dela, isso a assustou mais ainda. 
“Ela precisa parar, aquele cruzamento é perigoso!” Pensava o bêbado, enquanto sentia uma adrenalina lhe tomar o corpo. 
Ambos se aproximavam, ela estava cansada e sem forças, isso a obrigava diminuir o ritmo e ele, com passos cambaleantes, mente a mil e adrenalina circulando por seu sangue sem dosagem alguma, alcançava a ruiva. Ele voltou a gritar, mas ela não reconhecia o que ele dizia, muito menos achava aquilo entendível, estava com muito medo. 
Para o bêbado, aquilo estava errado, aquilo não era para acontecer. Ele voltou a gritar, a rua se aproximava e ele se desesperava cada vez mais. Ela precisava parar...
Ela correu e correu até ser jogada para o outro lado da rua por um carro, que não conseguiu frear a tempo, e bateu contra o corpo da jovem.
Ele congelou.
Sua mente alcoolizada não sabia o que fazer, estava desamparado. A cena mortal repassou por seus olhos amargurados, não somente uma, mas duas, três vezes; aquele vestido azul parecia ter tido vontade própria, voou como se o vento viesse bailar com ele, mas sua dona fez suas asas quebrarem e aterrissou no chão, sem delicadeza ou até mesmo cuidado. Estava destruído.
 O tempo de reação foi lento, parecia durar horas, até que um único músculo desencadeou o movimento dos demais. Sua boca abriu como se ele fosse engolir o maior pedaço de pernil que já havia visto, e dali saiu o mais estridente grito. “Não! Não! Não!” repetia o homem em desespero total. Sua visão embaçada enxergava somente o corpo da jovem, estirado na rua gelada e coberta por folhas das árvores residentes naquele trecho. A lua iluminava a cena, que se comparava a um filme em câmera lenta.
Ele soluçou, berrou, bateu no chão... Tudo isso de longe, sabia que caso se aproximasse seria intimado, seria investigado e que desculpa daria? Ele saiu correndo antes que chamassem a polícia, só pode ver a multidão que em instantes se juntou, encobrindo o corpo da mulher e seu vestido azul, manchado de carmesim e folhas, desfigurado e mórbido. 
Era culpa dele? Ele havia a matado? Mas... Como? Ele nem mesmo a tocou. O bêbado se reconstituiu, correu até sua casa, culpando-se, lamentando-se. Ele estava cheio de remorso e, claro, álcool. 
Não conseguiu dormir. Ouvia o choque do carro com o gracioso corpo da jovem sempre que fechava seus olhos. Sempre que se lembrava de como havia visto ela minutos antes e agora ela era apenas um punhado de carne e sangue sem vida, transformava seus olhos fundos em goteiras incessantes. Qualquer barulho lhe ativava os reflexos, ele jurava que estava vendo vultos azuis. “É o cansaço, o álcool e o trauma” repetia ele encolhido na cama de casal localizada no centro de seu quarto mal mobiliado. 
Não estava disposto para o trabalho, nenhuma das vezes. O corpo do homem continuava se arrastando para fora da cama, sem ânimo ou vida. Ele se igualava àqueles de quem cuidava. Continuava sua maldita rotina, com pensamentos aéreos e preocupados. Ele sabia que iria vê-la aquele dia... Ele sabia que iria vê-la... E precisava.  Não poderia, desta vez, ver seu lindo sorriso despreocupado, nem mesmo seu vestido azul que funcionava como imã para ele. Essa verdade lhe perturbava a cabeça. Estava enlouquecendo. Ansioso e amedrontado.
Havia quatro corpos naquele dia, deixou por último o que se encontrava mais longe da mesa cirúrgica, rezava para não achar a moça numa daquelas macas geladas e disfarçadas de caixão inapropriado, mas queria, lá no fundo daquela mente ignorante, que ela estivesse ali, apenas para vê-la de novo.  Haviam sido examinados dois corpos até então. Enquanto o homem preenchia as fichas, sua visão periférica captava movimentos nas laterais. Ele via vultos, correndo de um lado para o outro, não lhe faltou muito para ouvir coisas. “Você é o culpado”, ecoava em sua mente. Logo percebeu, os mortos movimentavam suas bocas, seus tórax evidenciavam respiração e suas vozes repetiam frases o culpando. Ele, em desespero, agradecia por eles ao menos estarem cobertos por panos brancos. Ele se afastava progressivamente dos corpos. Suas mãos tampavam seus ouvidos e seu peito quase rasgava toda vez que seu coração pedia por espaço para bater. Seus batimentos transformaram-se em resmungos que insistiam sair de sua garganta com violência. “Não fui eu, não fui eu, parem, parem com isso!”, o homem resmungava. De resmungos passou para berros. Ele se afastou até encostar-se a uma das macas onde havia um corpo não inspecionado; a ficha que estava presa à maca caiu. Ele a pegou e, num único segundo as vozes pararam e os mortos pareciam ter decidido parar de amolar o homem. 
“Laiane Macedo [ ... ] Vítima de atropelamento [ ... ] Corpo achado em menos de vinte e quatro horas” O homem lia as informações entre soluços... Era ela? Era a mulher que ele havia matado? Era ela finalmente?! Não, ele repetia consigo mesmo várias vezes, ele não a matou, ele não fez nada com a mulher. Sua mão suada escorregava por entre a maca, chegando até a mesa onde se encontrava ferramentas para os procedimentos. Ele tremia e seus dentes rangiam sem expectativa de parar e o inferno começou de novo, com mais intensidade. Os mortos agora riam incessantemente e gritavam que ele era um assassino, um até mesmo segurou forte em seu pulso, puxando-o para perto de ti e com seu bafo pútrido disse lentamente “Ela tinha uma vida pela frente... E você a matou. Não estava contente por ser infeliz?!”. O morto o soltou e voltou a gargalhar.
Parem. Parem, parem! 
Parem!
PAREM!

-Parar com o que Jeremy...? - uma voz suave foi ouvida atrás dele. O movimento na maca atrás dele era notável, ele sentia a coisa se descobrir, ele a sentia se sentar, sentia suas mãos gélidas lhe tocar os braços e subir ao pescoço. –Parar com a verdade? Por que deveriam? –a mão voltou ao encontro do pescoço do homem, lhe arrepiou a espinha, trancou-lhe a boca de onde nem mesmo um “a” ousava sair. A curiosidade do funerário fora tanto que lhe fez olhar de canto para aquilo que o tocava. Um vestido azul. O sangue gelou e sua respiração passou a ser mais arrítmica, logo a outra mão da morta se juntou ao baile no corpo do homem, ambas as mãos juntaram-se no pescoço e aos poucos passaram a apertá-lo. – Você me matou Jeremy! Você me tirou uma vida inteira! E por quê?!
-Me perdoe  –replicou o homem com dificuldade ao falar. –Eu estava desolado. Eu não tenho ninguém!
-E achou que um dia iria ter alguém? –sussurrou a morta no ouvido do funerário.  –Achou que iria me ter? 
O homem mais nada pode dizer. Ele estava errado. Ele sabia que era podre como o interior de seus companheiros falecidos. Ele estava não tinha nada e nem ninguém e jamais poderia tê-la. Um pequeno lapso temporal então lhe ocorreu. Quantas vezes ele não havia sido chamado de derrotado? De medíocre e nojento? Lembrou-se do motivo que escolheu para trabalhar com os mortos; Os vivos eram ruins de mais, mas isso não importava no momento... Ele a queria. Ele não poderia tê-la mais?
Será? 
Ele retrucou a mulher não com palavras, mas com um ato violento. Jogou o corpo para longe e começou a arranhar o rosto da falecida. Gritava que ela era dele e que agora, ela estando morta jamais poderia escapar ele. Jeremy estava louco, doente, obsessivo. Ele a queria mais do que qualquer coisa, ela poderia fazer ele feliz! 
Ele lhe arrancou a única coisa que poderia prendê-la a ele  –Você será minha para sempre! –disse o compulsivo retirando do corpo gélido e imóvel da falecida, seu coração. 
Cortou-o em pedaços e passou a degustar na frente do corpo paralisado e desfigurado da mulher. “Vamos sua putinha, diga agora que não será minha!” gritou o homem em meio ao surto, mas o corpo nada lhe respondeu. Nada na verdade aconteceu. Nada. As vozes sumiram e os corpos que aplaudiam e o sentenciavam estavam deitados e cobertos. 
O que havia acontecido? 
O homem encarava a falecida, algo estava errado. Ela não era ela. Ela não vestia seu traje azul. Ela não era a mulher por quem ele havia se apaixonado. Ela não era a mulher! 
Cadê ela?! Cadê aquela vaca?! –gritava o homem estridentemente. –Cadê a minha amada?! Por que você não fala?! –ele se desesperava cada vez mais.
O homem estava psicótico, não sabia o que mais fazia para ela dizer, por que ela não era sua amada? Por que nenhuma das anteriores era sua amada?  Por que ela não havia aparecido naquela casa funerária?! Por que a dama de vestido azul não lhe encontrava?  Ele a esperava! Ele a desejava desde aquele acidente! Ele esperou dias, semanas e meses para que um dia o corpo de sua amada, morta, chegasse até ele.
Por quê?
O homem então, desiludido e cansado de esperar senta-se ao lado da moça desfigurada e com cautela corta seu pescoço, enquanto com a outra mão segurava o coração despedaçado da falecida. Com suas últimas forças desejou encontrar-se com sua amada de vestes azuis.

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